Troca de papeis.

Papeis trocados.

Simulacro Social de Gênero e Arte.

I

Flui na civilização, assim como nos demais seres vivos, a imitação, a camuflagem, o mimetismo como uma constante, é corrente. Nos humanos o mimetismo beira a fraude. Mente a aparência. Simular na exterioridade, nem sempre através de planos bem traçados, porém, como uma dobra que esconde, um lado sombra que não é possível comparar, julgar, ver, é raiz para dramáticos atos, de consumo a passionais disputas por atenção. Seriamos todos (espertos/tolos) clientes da aparência? Mesmo hoje em liberal convívio, ainda assistimos aos dramas, de indivíduos submetendo-se a cirurgias e tratamentos complexos para alcançar seus propósitos de ser na superfície o que sentem no intimo.

Para a arte, correnteza seria um termo bem mais indicado, mais poético, já que as leituras ao travestir-se não estão somente implicadas aos elos (encadeados), mas, a uma necessidade de, no fluxo da vida, em sua busca de sobrevivência, encontrar proteção ou proteger. Por isso a imagem da correnteza no que ela tem de mais natural, de mais orgânica e violenta. Onde sentimentos, política, jogo mesmo, teria sempre uma norma a providenciar o simulacro/disfarce como uma forma de tutor/servo da personalidade. Poderíamos ir muito longe, revolver os primórdios, os séculos em seus dramas e encontraríamos lendas e mitos das mais diversas culturas, onde a aparência de gênero (além mesmo do aspecto de macho ou fêmea, bela ou fera, Máquina ou deus) seria visto para além do natural. Dizem-nos que entre os outros animais, existem situações para mudança de papel (sexual, ambiental, social), da metamorfose, e, não estou tratando do caráter da atividade no sexo em si, nem mesmo da atitude mimética que inibe ser presa, e sim, encontrando personalidades que por necessidade social submeteram o aspecto ou autoridade ao oposto (homem/mulher), tratando da sua própria sexualidade somente num mundo à parte.

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Lembraríamos as escritoras editados, com algumas delas convivemos hoje com seu artigo (a) original, é que com o passar dos séculos resgataram sua personalidade e nome, autoridade. Citemos como exemplo as muitas autoras de livros “românticos” e mesmo revoltadas ensaístas de periódicos que tiveram seu gênero trocado do ela para o ele, para fugir das sombras Do Martelo, que ainda existem.

Conta a história que a igreja católica num aceso de temor e fúria escreveu um manual para instruir seus bispos a detectarem em mulheres vivas e pensantes: amantes do demo. Joana D’arc, de mocinha em trajes de camponesa foi aos campos de batalha vestida como um homem. Reza a lenda que liderou como um soldado em ferro as tropas francesas rumo a vitória, depois já inútil para o poder, real e “divino na terra”, foi acusada de bruxaria e queimada viva, nas chamas do tal manual. No cinema esse detalhe é lembrado, no filme de Luc Bersson, quando depois de tentativas inúteis de fazê-la “possuída”, rasgam-lhe a roupa de fêmea e lhe jogam uma roupa de macho, lançando finalmente em tragédia sua fé. Sua política influía. Sua iluminação não era bem vista.

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Assim respeitamos as muitas escritoras que foram editadas com nomes masculinos ou mesmo dúbio, editados em jornais de grande circulação, com livros impressos em centenas de exemplares, independentes. A moral afastava as mulheres dos escritos, a literatura era uma atividade de homens. Vestidos de homem.

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Nestes difíceis tempos, alguns homens vestiram a máscara para sobreviverem às políticas próprias do império. Revoltados sociais, independentes sexuais tipo Alfonse Donatier – o marquês de Sade, abolicionistas, e feministas de primeira hora.

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Quando veio a revolução política e as luzes dos direitos humanos iluminavam o horizonte do pensamento, a res-pública sendo mãe da liberdade, os papeis trocados deram lugar, na arte principalmente, ao herói(na) do tipo Orlando, personagem do romance de Virginia Woolf, trocando de papel como quem troca de roupas. Existem muitas permutas na literatura, é uma constante correnteza lembre-se, na religião também, ocidente e oriente sustentam a sugestão. Nas civilizações ditas primitivas o mágico/xamã/pajé/artista tem seu aspecto em metamorfose para intimidar o respeito, estabelecer vínculos. Socialmente também era costume antigo vestir o menino ainda pequeno em trajes de menina, cabelos grandes de falsos cachos, como uma forma de evitar o mau-olhado.

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Nesta correnteza vibrante chegam-nos Luzia Homem, a moça rústica castigada pelo sol e drama, e especialmente Diadorim, do Grande sertão: Veredas. Diadorim nunca se disse macho, tampouco seu nome indica, só na memória e desejo de Riobaldo, e nossa, ele é fêmea despois da morte.

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A riqueza de metamorfose de Orlando impressiona. Aonde num auge de sentimentos dormimos e acordamos mudados no sexo, no físico? Reside na mentalidade de Virginia, o corpo acompanha, obedece aos desejos do intimo. Até o tempo esgarça, nossa heroína perpassa a história. Que bela metáfora para um mundo onde Deus é pai, o macho domina, brinca de Deus.

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Algumas teses di-los-iam que o fato é Orlando nascer da criatividade feminina, onde o horizonte será sempre o tato. De dentro para fora.

No sertão jagunço de João, polido poliglota, o campo de ação é o outro, é a memória gigante sertão. Riobaldo, em carne, se aproxima do capeta, mas, se afasta do irmão. Mantém do desejo, o segredo. E Diadorim nunca lhe disse que não. Um cabra remoendo sedimentos de pecado católico, não roça ‘os couro’ de outro gibão. Nas veredas inconscientes do físico, em todo mal-encarado e agressivo macho, há uma alma feminina tomando banho de regaços ladeados de carnaubeiras e aguapés, escondido do resto do bando. No corpo também, uma fêmea tem sempre um regaço ladeado de pelos que aprofunda e enriquece o sentido do mistério da vida. Quanto mais bruta a capa mais escondida anima?

Só posso entender que as veredas seriam o inconsciente, querendo um pouco de iluminação em meio a toda aquela bruta escuridão.

No ato criativo artístico há sempre um casamento entre os lóbulos cerebrais.

Na alquimia isso é celebrado com as núpcias do masculino com o eterno feminino, em Psychologie el Alchimie Carl Jung nos diz: “Não é o homem que tem, em primeiro lugar, necessidade de redenção, mas, a divindade que se perdeu e está adormecida na matéria.”.

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Da velha tese de Laborit “... diante de um ambiente hostil, restam ao homem três alternativas: A luta, a fuga ou o bloqueio...” É, então como alternativa ao medo num ambiente hostil (porque essa palavra parece hóstia?), que ele não esqueceu da camuflagem, do travestir-se.

Na natureza sobrevive o mais forte? Na arte a força não é razão, expande os limites do insensível, no sensível, já que a meta é a imortalidade da feita, à feira.

Correnteza forma de sobreviver, vencer. Na tragédia da lida que assume a luz, num palco de passagem.

renatodemelomedeiros@gmail.com


[sendo um esboço, estimo sugestões de leitura e interpretação]


2

               Sobre o papel que o género desempenhou e continua a desempenhar em nossa história, é sim algo importante. Acho incrível que mulheres escritoras (e não só elas) tenham adoptado pseudónimos masculinos ou até mesmo entrado em personagens masculinas. Em parte é uma reacção ao meio externo, em parte demonstra uma capacidade do ser humano em ser camaleão, que cada um pode ser, cada um pode ser actor em certos momentos da vida. Tem que ter capacidade para fazê-lo com sucesso! Madonna disse que "não há coisa mais fascinante e ao mesmo tempo intrigante que um homem que seja afeminado", e é mais ou menos por aí. Mudar os papéis pode ser uma arte também. Para poucos, não para todos.



Pela teoria de Laborit (de que na adversidade só resta a luta, a fuga ou o bloqueio), o travestir-se, o camuflar-se, a mutação, não seria uma forma de luta, de resistência ao invés da pura e simples fuga?